Famílias vianesas no século XVI

 O rol de inscrição na Confraria do Nome de Jesus em 1561

 

Na igreja de Santa Maria Maior, em Viana da Foz do Lima, foi em 1561 fundada a Confraria do Nome de Jesus. Teve por parte do público uma adesão entusiasta, como nunca se tinha presenciado nestas paragens.

Porquê uma confraria dedicada ao nome de Jesus? Que significado tinham: o nome; o nome de Deus; o nome de Jesus? Onde nasceu e como se difundiu esta devoção?

Onde foi constituída a primeira confraria desta invocação. Quem a introduziu em Viana? Como aderiram os moradores de Viana? O que representa o rol dos irmãos da confraria? O que nos diz este rol sobre a Viana do século XVI?

São estas as principais questões para que tentaremos encontrar uma resposta.

 

1. O nome de Deus e o nome de Jesus.

1.1. Desde os mais recuados tempos, o nome foi considerado de grande importância. Teve sempre a função de permitir aos outros membros da comunidade identificarem um indivíduo, distinguindo-o dos restantes. Esta relação do nome com o indivíduo apresentava-se de tal ordem que se chegou a admitir que o nome fazia parte da natureza daquele a que pertencia e como que concentrava uma parte da sua essência íntima. Bênçãos e maldições se invocavam sobre o nome deste ou daquele, com a certeza de que se atingia a pessoa na sua totalidade.

Na antiguidade, e especialmente no mundo bíblico[1], ao dar o nome a uma criança, escolhia-se uma palavra relacionada com as circunstâncias que acompanharam o seu nascimento ou que, de algum modo, anunciavam o seu futuro, como sucedeu, por exemplo, com Isac (Gen. 21, 3), Moisés (Êx. 2, 10), e Berias (1 Cron. 7, 23). Certos nomes sugeriam as qualidades das pessoas, como aconteceu com Jacob (Gen. 27, 36) e Nabal (1 Sam. 25, 25). Por vezes mudavam-se ou acrescentavam-se, para fazer alusão a determinadas particularidades, como no caso de Abrão, alterado para Abraão (Gen. 17, 5), Gedeão, substituído por Jerubaal (Juiz. 6, 32), Daniel, por Beltessazar (Dan. 1, 7), e Simão, por Cefas ou Pedro (Mat. 16, 18).

O nome, entre os antigos, longe de ser uma designação banal, traduzia o papel que a cada um estava reservado no universo. Se o nome correspondia a um ser, dar-lhe um nome, ou substituí-lo por outro, significava ter domínio sobre ele. Segundo a Bíblia, Deus iniciou a criação, dando nome a todas as criaturas, dia, noite, céu, terra e mar (Gen. 1, 5-10), designou até cada um dos astros pelo seu nome (Is, 40, 26), e encarregou Adão de dar um nome a cada animal (Gen. 2, 19-20). Os homens, em certas ocasiões, punham um nome significativo a lugares a que estavam associados acontecimentos importantes, como Babel (Gen. 11, 9).

E se alguns nomes eram tidos por nefandos, isto é, se não se deviam pronunciar, por causa da sua ligação com as forças do mal, outros eram considerados como garantia de protecção, de justiça, de paz, de bondade. Entre estes, uma referência especial merecia o nome de Deus, raiz e fonte de todo o bem, da vida, da luz e do amor, que é a origem da harmonia que mantém a união do universo.

O autor do livro do Êxodo, pela voz de Moisés, antecipou-se aos filósofos gregos dos séculos imediatos, ao designar Deus com uma definição ontológica, que superava a de todas as linguagens da época: Yahveh ou Yehovah​, “Aquele que É”, ou, por outras palavras, o Ser por excelência ou autonomásia. Movidos por um profundo respeito, os hebreus, em geral, evitavam proferir o nome assim revelado no Horebe, substituindo-o, nos textos escritos, por Elohim (Deus), ou, mais frequentemente, por Adonai (Senhor). Na tradução dos livros sagrados, do hebraico para o grego, usou-se, para o mesmo efeito, a palavra kyrios (Senhor).

Quando Jesus de Nazaré se apresentou aos homens do seu tempo como manifestação concreta e pessoal de Deus, e seu filho por excelência, no meio de todos os outros filhos que são as demais criaturas humanas, é natural que o seu nome – adaptação fonética de יהושע / יהושוע (yehoshua / yhowshuwa), palavra composta que corresponderá a “Yaveh salva” ou “Deus Salva(dor)” – viesse a adquirir uma importância excepcional.

1.2. Jesus, como o nome indica, é o que salva (Mat. 1, 21 e 25), o que devolve a saúde aos enfermos (Act. 3, 16), mas também, e acima de tudo, o que garante a Vida (eterna) àqueles que crêem nele (Act. 4, 7 e 12). Usando o nome de Jesus, os discípulos curam doentes (Act. 3, 6), expulsam demónios (Marc. 9, 38; Act. 16, 18; 19, 13), realizam todos os tipos de milagres (Mat. 7, 22; Act. 4, 30). Os crentes reúnem-se em nome de Jesus (Mat. 18, 20), acolhem aqueles que se apresentam em seu nome (Mac. 9, 37), embora prevenindo-se contra os impostores (Mac. 13, 6 s); dão graças a Deus em nome de Jesus (Ef. 5, 20; Col. 3, 17), conduzindo-se de modo que Ele seja glorificado (2Ts. 1, 12).

A pregação dos apóstolos destinava-se a espalhar o nome de Jesus (Act. 4, 17 s.). Paulo recebeu o pesado encargo de o difundir (Act. 9, 15), missão que para ele se tornou causa de sofrimentos (Act. 9, 16), mas, no entanto, desempenhou com coragem e orgulho (9, 21 e 27s.), dedicando-lhe a vida (Act. 15, 26) e estando disposto a morrer por ele (Act. 21, 13).

Em face destas proclamações, compreende-se o valor que para os cristãos continuarla a ter o nome de Jesus. Na Epístola aos Coríntios de S. Clemente Romano (escrita entre ao anos de 88 e 97), faz-se referência a esse santo nome uma dezena e meia de vezes.

Gradualmente, o nome de Deus e o nome de Jesus perderão, no entanto, a carga semântica dos tempos antigos, passando a empregar-se de um modo semelhante ao de hoje. O que se vai acentuar no correr dos séculos é a importância dada não ao nome mas a Jesus, em si mesmo, ultrapassando a antiga mentalidade que identificava no próprio nome a essência da pessoa.

1.3. Na Baixa Idade Média, a especulação filosófica e teológica conduziu os estudiosos a tratarem expressamente a temática do nome, e particularmente do nome de Deus e do nome de Jesus. A obra Περι θειων Ονοματων, ou, na tradução latina, De divinis nominibus, que Dionísio Areopagita, primeiro Bispo de Atenas (450-525), dedicou aos nomes de Deus (na verdade, aos atributos que nEle convergem no mais elevado nível), ultrapassa de longe a nossa temática. Observação idêntica podemos fazer a respeito da exposição que se inicia na Distintio XXXX do Liber Sententiarum, em que Pedro Lombardo (1095-1160) analisa os diversos nomes que usamos para falar de Deus (“de nominum diferentia quibus utimur loquentes de Deo”). A temática do nome mereceu também a atenção de S. Anselmo de Cantuária (1033-1109), no De Divinitatis essentia monologium[2]: os nomes, com tudo o que podem exprimir, ficam muito aquém, quando se trata da realidade divina.

S. Tomás de Aquino (1225-1274), que conhecia bem estes autores, tendo até analisado, na peugada de Santo Alberto Magno (1193-1280), o De divinis nominibus de Dionísio Areopagita, abordou, no Comentário In Primum Sententiarum (Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo), a problemática do nome de Deus, deixando claro que o nome não se identifica com a realidade em si mesma, mas é uma criação do intelecto humano, destinada a representar essa realidade: “pluralitas rationum quam nomina significant, non est in Deo, sed in intellectu nostro tantum”.

2. A devoção popular.

2.1. Com maiores repercussões do que a especulação teológica, as novas tendências da religiosidade popular tomarão como objecto de devoção especial o santo nome de Jesus. As duas principais ordens religiosas que, nos últimos séculos da Idade Média, exerceram o seu apostolado preferentemente em meios urbanos, a Franciscana e a Dominicana, foram as principais impulsionadoras desta devoção entre as camadas populares.

A esse movimento não foi alheia a intervenção do Pontífice Romano. Em 1274, no terceiro concílio de Leão, convocado pelo Papa Gregório X, entre as medidas propostas para debelar os males que afectavam a sociedade do seu tempo, incluiu-se a devoção ao Nome de Jesus. Por essa ocasião, o Papa dirigiu a Giovanni de Vercelli, superior da Ordem Dominicana, a bula Nuper in concilio, datada de 21 de Setembro de 1274, na qual o encarregava de diligenciar para que os seus religiosos a pregassem em todo o mundo cristão. Os dominicanos abraçaram com ardor esta missão e o povo acolheu essa pregação com entusiasmo. Mais ainda, segundo refere o cronista, os religiosos dominicanos decidiram que em todas as igrejas da sua ordem houvesse um altar especialmente dedicado a esse santíssimo nome[3]. A festa litúrgica do Nome de Jesus já existia desde há muito, embora se designasse usualmente como festa da Circuncisão, celebrada oito dias após a festa do Nascimento de Jesus, em correspondência com o tempo que, segundo a tradição judaica, mediava entre os dois momentos; se alguns acentuavam o acto físico da circuncisão, vendo nele, dentro da tradição judaica, a separação das forças do mal, ou, com um excesso de devoção, o primeiro momento em que se derramou o sangue de Cristo, para outros o que sobressaía era o facto de nesse dia ter sido atribuído o nome a Jesus, como sucederia no equivalente rito cristão do Baptismo[4].

2.2. No ano de 1432, grassava a peste em Lisboa e os habitantes da cidade que tinham essa possibilidade fugiram para outras localidades, mas o resultado desta debandada foi o ainda maior alastramento da epidemia, causando a morte de pessoas aos milhares. Um ardoroso pregador, Frei André Dias, bispo de Megara[5], exortou então o povo a redobrar de fervor na devoção ao nome de Jesus. A essa prática e ao uso de água benta, se atribuiu o facto de a cidade e todo o país, pouco mais de um mês decorrido, estarem livres da peste. Com o apoio dos que o rodeavam, Frei André Dias fundou na igreja de S. Domingos uma confraria, cujo fim era o de espalhar a devoção ao nome de Jesus e, ao mesmo tempo, impedir a blasfémia, a linguagem obscena e o abuso do juramento[6].

É provável que André Dias, durante o tempo da sua permanência na Itália, tivesse sido influenciado por outros arautos da devoção ao nome de Jesus, designadamente pelo franciscano S. Bernardino de Siena (1380-1450), devendo ter ouvido algumas das suas pregações. A Ordem Franciscana teve, com efeito, um lugar cimeiro no culto do nome de Jesus e na sua propagação entre os fiéis. S. Francisco abraçou-a com fervor e os seus filhos imitaram-no com entusiasmo. Foi um dos membros da Ordem, Gilberto de Tournay (c.1200-1284), que escreveu o “De laude melliflui Nominis Jesus” (Sobre o louvor ao dulcíssimo nome de Jesus), editado por S. Boaventura (1221-1274), a quem já foi indevidamente atribuído. Gilberto de Tournay era aliás muito próximo de S. Boaventura, tendo-o acompanhado ao 2.º concílio de Lião (1274), que, segundo vimos, constituiu um marco importante na história da devoção ao nome de Jesus. Dentro da Ordem, o mais apaixonado pregador desta devoção foi o já mencionado S. Bernardino de Siena[7]. Além de incentivar os ouvintes a que a exteriorizassem, estimulava-os a inscrever o nome de Jesus nos monumentos. Adoptou um monograma formado pelas três letras J.H.S., que significam Jesus Hominum Salvator (Jesus Salvador dos Homens)[8], mandando-o pintar sobre pequenas tabuletas, rodeado por um círculo radiante, e convidava os fiéis a trazê-las consigo, como ele próprio o fazia, e a prostrarem-se perante elas, para dar glória a Cristo Jesus[9].

Nesse ano de 1432, no meio da angústia desencadeada por mais uma vaga avassaladora da peste negra, Frei André Dias erigia em Lisboa a primeira Confraria do Santo Nome de Jesus, recolhendo a herança das tradições franciscana e dominicana e de outras fontes. Pelo local onde a irmandade tinha a sua sede, tornava-se evidente a sua íntima relação com a Ordem Dominicana. Idênticas fundações se seguiriam nas igrejas dominicanas do país, da Europa e de todo o mundo cristão.

Pio V e outros Pontífices corroboraram a determinação de que nas cidades, povoações e lugares onde houvesse igrejas da Ordem dos Pregadores, apenas nestas se pudessem erigir confrarias dedicadas ao nome de Jesus[10].

Neste contexto nasceu em Viana da Foz do Lima a Confraria do Santo Nome de Jesus. Uma vez que ainda aí não existia qualquer igreja ou convento dominicano – davam-se então os primeiros passos em ordem à sua fundação – a sede da confraria foi instalada na igreja paroquial de Santa Maria Maior, que hoje é também a Sé diocesana de Viana do Castelo.

3. A Confraria do Santo Nome de Jesus, de Viana.

3.1. A Confraria ou Irmandade do Santo Nome de Jesus, durante muito tempo, andou confundida com a Irmandade ou Confraria dos Mareantes, como ainda se vê em escritos recentes[11]. Para a maior parte dos autores que ao assunto se tinham referido, tratava-se simplesmente da mesma confraria[12]. Segundo Manuel D. P. Cunha Serra, para superar as limitações impostas à Confraria do Senhor Jesus dos Mareantes, designadamente a recusa de nela admitir confrades que não fossem mareantes ou seus familiares, a proibição de em certas circunstâncias recorrer a sinais exteriores que tinham a ver com o prestígio social da instituição (uso de estandartes e de sinos, participação das procissões), assim como a impossibilidade de desempenhar atribuições que pareciam consentâneas com os estatutos (designadamente a sepultura de irmãos), um grupo de pessoas, embora fundamentalmente coincidente com o dos mesários da referida Irmandade dos Mareantes, teria decidido fundar outra confraria ou irmandade, com uma ligeira alteração da respectiva designação.

Trata-se, porém, de duas irmandades diferentes:

– uma, designada como Irmandade de Jesus dos Mareantes, ou, por vezes, simplesmente como Irmandade ou Confraria dos Mareantes, fundada por volta de 1504; antes da erecção da Irmandade da Misericórdia, assumiu também funções que eram apanágio das Irmandades congéneres, e por isso, para efeito de beneficiarem da isenção de contribuir para obras da ponte da Ajuda, entre Elvas e Olivença, em 1517, os seus mesários foram classificados como “ofeciaes da Misericórdia”[13];

– outra, designada como Irmandade do Nome de Jesus, fundada em 1561, por iniciativa do mandatário que o Arcebispo Dom Frei Bartolomeu dos Mártires enviou a Viana da Foz do Lima para tratar da criação do mosteiro de Santa Cruz, como veremos.

Quando, há vinte e cinco anos, iniciei a leitura e a transcrição do “Livro da Irmandade” do Nome de Jesus, interroguei-me sobre as circunstâncias em que de facto esse rol apareceu, questionando-me sobre as razões que levaram à sua elaboração. A única indicação que se lê no início do rol é a de que este se destinava a assentar o nome de “toda a pesoa que quer ser irmão do nome de Jhũs”.

3.2. Saltou-me logo à vista que o primeiro inscrito era “O Padre Frey Estevom”, e deduzi que este podia estar na base desta iniciativa. Procurei-o na lista dos clérigos então conhecidos em Viana, designadamente entre os religiosos franciscanos do mosteiro de S. Francisco do Monte, mas não se registava entre eles qualquer um com esse nome. Lembrei-me dos dominicanos, mas o repertório organizado por Frei António Do Rosário[14] não me deu o necessário esclarecimento, pois nele encontramos vários religiosos com esse nome, entre os quais de destaca Frei Estêvão Leitão, mas de nenhum deles se menciona qualquer estadia em Viana da Foz do Lima, nem sequer em Braga.

Era porém Frei Estêvão Leitão o protagonista de que andávamos à procura. Foi a releitura da Vida do Arcebispo redigida por Frei Luís de Sousa[15] que nos iluminou sobre o assunto. Segundo diz o biógrafo de D. Frei Bartolomeu, ao tratar da fundação do mosteiro de Santa Cruz, “o primeiro princípio que se deu ao Convento foi por mãos do padre Frei Estêvão Lei­tão, o qual por ordem que lhe dei­xou o Arcebispo partindo para o Concílio, se foi a Viana em Maio de 1561, com um alvará da Rainha D. Catarina para escolher sítio, e tomar e comprar as casas que lhe parecesse, e aí esteve alguns meses continuando em santos exercícios, pregando a miúdo, visitando os enfermos, e acudindo aos pobres com esmolas” [16]. Ora é logo no dia 1 do imediato mês de Junho que se abre, aliás com o seu nome, o rol de inscritos na Confraria do Nome de Jesus.

Além de cuidar dos aspectos materiais relacionados com a fundação do mosteiro, Frei Estêvão lançava desse modo os alicerces de uma futura acção pastoral dos frades dominicanos em Viana. Da actividade de Frei Estêvão nesta povoação ficou entre outras, como expressiva herança, a mencionada Confraria ou Irmandade do Santo Nome de Jesus. Entusiasmados com a pregação, os vianenses responderam aos seus incitamentos, acorrendo em massa a dar o nome ao rol da nova Confraria, ao longo do ano, a partir de 1 de Junho de 1561, e nos anos seguintes. Esse rol constitui o Livro da Irmandade do Nome de Jesus[17].

3.2. Os chefes de família, ou, na sua ausência, as esposas inscreveram-se, não apenas individualmente mas com todos os que viviam na sua casa, por regra, citando-os por nome, um a um, não só os consanguíneos e afins mas também as amas, os criados e as criadas ou os moços e as moças, as escravas e os escravos. Ter o seu nome e o dos seus escritos no livro da Irmandade do Nome de Jesus era uma garantia de que Deus não os esqueceria e de que, por conseguinte, lhes dispensaria constantemente a sua bênção e protecção.

A menção dos criados e escravos traduz um aspecto simpático da mentalidade dos vianenses, a que porventura não será alheio o espírito dos dominicanos, que fazia os patrões interessarem-se pelo destino último dos seus dependentes.

Em consequência dessa atitude, temos agora ao nosso dispor um documento excepcional, talvez único, que nos dá a possibilidade de reconstituir o amplo mapa das famílias de Viana nos meados do século XVI, concretamente em 1561-1562, incluindo não só os parentes de sangue e afins mas também aqueles que lhes prestavam serviço – os famuli, vocábulo de que, por via etimológica, se originou o de família, realidade que englobava simultaneamente os patrões e os seus dependentes.

Limitamos este estudo às inscrições feitas durante o primeiro ano[18], e, de qualquer modo, não podemos ter a pretensão de obter números absolutos. A inscrição era voluntária e ninguém pode garantir que todos os vianenses tenham acorrido a fazê-la nesse ano, embora pareça mais provável que a maioria o fizesse, pois, desde que se entra no “ano segundo”, o livro transforma-se num registo pouco ordenado de esmolas dadas pelos irmãos e devotos. Observe-se também que, embora em número limitado, há inscrições de fiéis residentes nas freguesias rurais e noutras localidades exteriores ao concelho de Viana.

 Note-se ainda que só dois anos depois, em 1563, dariam o nome ao rol as 63 religiosas do convento de S. Bento e apenas em 1564 se inscreveriam 20 religiosas do mosteiro de Vitorino, a que se juntaram mais 4 em 1567, enquanto do convento de Santa Ana não se menciona mais do que a madre abadessa, admitida em Dezembro de 1564[19]. Não consta expressamente qualquer admissão de religiosos do convento de S. Francisco e será pouco provável que dele proviesse algum dos clérigos constantes da lista.

Depois do primeiro ano, é praticamente impossível discriminar novas inscrições, no meio da lista das pessoas que fazem donativos. A análise a que vamos proceder restringe-se, em consequência, a este primeiro ano, que decorre entre Junho de 1561 e Junho de 1562. Durante esse período, em números redondos, deram o seu nome ao rol 5400 indivíduos, no seu conjunto repartidos por 1304 famílias (cerca de 50 de fora da povoação), com um total de 2451 filhos, mais 400 outras pessoas com diversos graus de parentesco, e 552 dependentes, sendo 112 referidos como escravos ou escravas, 73 como moços ou moças, 345 como criados ou criadas, e 22 como amas. Refira-se, aliás, que o número de famílias inscritas nesse rol está próximo do que é registado noutros documentos da época: 1092 em 1548; de 1100 a 1200 em 1598 e 1599.

4. Procedência geográfica dos inscritos.

4.1. Como não se trata de um levantamento oficial, ao contrário de outros que já conhecemos, organizados metodicamente por ruas, para facilitar a execução e o controle das exacções – tal como a talha para a construção da ponte da Ajuda[20] ou a cobrança do pedido de 1544 (efectuada em 1549)[21], que já conhecemos, e outros posteriores − não há aqui uma sequência espacial, nem sequer, em grande parte dos casos, a menção do local de residência dos inscritos.

A maior parte dos inscritos morava no centro urbano. Entre os de mais longe, apenas dois vinham da Biscaia e eram provavelmente mareantes, uma vez que dão o nome sozinhos, sem menção da família. De Vigo aparecem duas menções, que devem referir-se ao mesmo cidadão, Bastião Calveiro, que de uma vez se diz carpinteiro e natural de Vigo, e de outra lá morador, com todos seus familiares. De Baiona aparece também um devoto, a inscrever-se em conjunto com toda a família.

Na sua maioria, as quase três dezenas de portugueses provenientes de localidades exteriores ao concelho de Viana podiam estar de passagem ou já se terem radicado na povoação quando aderiram à irmandade: em maior número estão representados os concelhos de Caminha, com 5 inscritos, Ponte de Lima, com igual número, Porto, com 3 (ou 4 se lhe somarmos 1 do Viso), Amarante e Braga, com dois, e, apenas com 1, Coimbra, Chaves, Barca (mais 1 de S. Martinho de Crasto), Valença, Monção, Correlhã, Entre Homem e Cávado, Arcos de Valdevez (aliás, a freguesia de Grade) e (Pico de) Regalados.

As freguesias do espaço rural integrado actualmente no concelho de Viana forneceram um número limitado de confrades, num total de 19: da margem direita do rio Lima, inscreveram-se 3 moradores da freguesia de Afife (sendo 1 da Ereira), 2 de Baltasares (Outeiro), igual número de Torre, 1 de cada uma das freguesias de Meixedo, Montaria, Orbacém e Perre; da margem esquerda, 3 de Darque (sendo 1 de Nossa Senhora das Areias) e 1 de cada uma das freguesias de Anha, Moreira, Mujães, Deucriste e Carvoeiro.

4.2. A maioria dos inscritos pertencia ao núcleo urbano da povoação da foz do Lima. Todavia, só uma pequena percentagem – pouco mais de um terço – mencionou o arruamento onde vivia. Normalmente, conhecendo-se uns aos outros, não consideravam esse pormenor relevante, a não ser quando as semelhanças dos nomes e apelidos podiam levar a confundi-los com os moradores de outros arruamentos, ou quando, à falta de outro, o nome da rua se usava como apelido, como se fizesse parte do nome. Singularmente, um dos inscritos, que é piloto, vive “em seu navio”.

De mais um terço, aproximadamente, descortinámos o arruamento onde viviam, através de outros documentos, designadamente da colecta de 1549, mas não foi possível definir a procedência exacta de outro terço (373) dos inscritos.

São referidos cerca de 117 arruamentos ou localizações equivalentes, não se mostrando possível a identificação de dezanove. Dos outros cerca de noventa arruamentos só uma parte corresponde a nomes que se podem considerar mais ou menos oficializados através dos arrolamentos públicos da época. Em face do que acabamos de dizer, a comparação entre o número de moradores somados em cada um destes arruamentos não legitima qualquer dedução, a não ser a nível aproximativo. Com base no esforço de identificação a que procedemos, podemos organizar da seguinte maneira os inscritos na irmandade, tomando como referência as moradas registadas em 1549, isto é, doze anos antes.



Ruas em 1549

famílias

total

Ruas mencionadas em 1561

famílias

total 

Dentro de muralhas

 

 

 

 

 

Rua do Cais

76

 

António .Abreu 3 / Cais 25

28

 

Cega

19

 

Cega 15 / Lamega 2

17

 

Grande

62

 

Grande

41

 

Judiaria

54

 

Parenta 7 / António Colaço 4 / Gregório 1 / J. Domingos 2 / J. Ribeiro 1 / Judiaria 25 / Salgado 8

48

 

Tourinho

24

 

Massadeira 1 / Tourinho 19

20

 

Poço

22

 

Poço

14

 

Postigo até porta do Campo do Forno

49

 

Praça 2 / Praça Velha 2 / Postigo 24

28

 

Hospital

15

 

Hospital 13 / J. Esteves 1

14

 

TOTAL

 

321

 

 

210

Arrabalde do Campo do Forno

 

 

 

 

 

Campo do Forno até porta da Ribeira

58

 

Forno 2 / Campo do Forno até Pelourinho 2 / Pelourinho 7 / Picota 6 / Praça Nova 1

18

 

Misericórdia até casas de Martim Barbosa (Rua da

50

 

Misericórdia

10

 

(Bandeira incluída na Misericórdia?)

 

 

Bandeira

19

 

Santa Ana

29

 

Santa Ana

29

 

 

 

 

Nova 1 / Nova de João do Campo 1 / Rosas 6

8

 

 TOTAL

 

137

 

 

84

Arrabalde da Igreja Velha

 

 

 

 

 

Porta de João do Rego até porta de Marcos Fernandes

53

 

J. do Rego

1

 

Pombal

33

 

Pombal

24

 

 

 

 

Caleiros

10

 

Piedade

35

 

Piedade 21 / Igreja Velha 4 / Piedade a Igr. Velha 2 / S. Bento 1 / Trás-Igreja 1 / Lº Anes 1

30

 

Lourenço Diz

19

 

L. Dias 

4

 

Gonçalo Roiz

13

 

Gonçalo Roiz

6

 

Carniçaria

28

 

Espírito Santo 5 / Carniçaria 8 / Açougues 4 / Atafonas 4 / Açougues às Atafonas 2 / Ferrador 1/ Bertolameu Roiz 1

25

 

 

 

 

Porta J. Rego - Atafonas 2

2

 

TOTAL

 

181

 

 

102

Arrabalde da Ribeira

 

 

 

 

 

S. Sebastião

101

 

Gonçalo Pereira 5 / S. Sebastião 83

88

 

Carvalho

23

 

Carvalho 22 / Pero Bravo 5

27

 

Raimundo

35

 

L. Diz 8 / João do Campo 1 / J. Miz da Ribeira 1 / Manjovos 7 / Fonte dos Tornos 5 / Pero da Nova 2 / Raimundo 28 / J. M. da Riqua 1

53

 

Porta da Ribeira até Santa Catarina [à margem:] estão aqui a Rua que começa da escada de S. João e vai para os Alboins e da Fonte dos Tornos e de Santa Catarina

160

 

Porta da Ribeira –Fonte dos  Manjovos 1 / Porta da Ribeira 91 / Ribeira 5 / Sª Catarina 29 / S. João 1 / Arcos(?) 1 / Corredio 1

129

 

Altamira

38

 

Altamira 25 / Duarte Álvares 1 / Oleiro 2

28

 

Loureiro

36

 

Loureiro 33 / Acabado 1

34

 

João Portela

21

 

J. Portela

10

 

 

 

 

So a Ribeira

5

 

TOTAL

 

414

 

 

374

Arrabaldes da Portela e da Abelheira

 

 

 

 

 

Portela

15

 

Portela

12

 

Abelheira

24

 

Abelheira

13

 

 

 

 

Não indicam rua

373

 

 

 

 

Ruas não identificadas

19

 

 TOTAL GERAL

 

1092 

 

 

 1186


 

5. Estrutura das famílias inscritas na irmandade.

 

Como já observámos, a inscrição na irmandade do Santo Nome de Jesus não se fazia a título meramente individual, mas envolvia explicitamente todos os membros da família. Esta era referida não apenas a nível genérico, mas citando, quase sempre por nome, cada um dos seus elementos, ligados ou não por laços de sangue.

Compulsando o rol dos inscritos, obtemos um retrato do modo como se compunham estas cerca de 1300 famílias (1254 do núcleo urbano de Viana), em que naturalmente não se incluem as religiosas dos Conventos de Santa Ana e de S. Bento.

5.1. O número de pessoas por família oscila entre o das que vivem sós (193) e as que reúnem até 16 elementos, sendo que acima desse número apenas se registam os casos excepcionais de uma família com 20 e outra com 23 membros. A distribuição pode ver-se no quadro seguinte:

Pessoas por família 

Pessoas

Famílias

Total

1

193

193

2

174

348

3

196

588

4

250

1000

5

133

665

6

105

630

7

67

469

8

55

440

9

32

288

10

18

180

11

12

132

12

5

60

13

3

39

14

6

84

15

0

0

16

3

48

17

0

0

18

0

0

19

0

0

20

1

20

21

0

0

22

0

0

23

1

23

Soma total 

1253 

5184 

 Média de pessoas por família: 4,1372706

 

 Em face deste panorama, podemos afirmar que às 1.254 famílias da povoação correspondem 5.207 habitantes e que é de 4,14 a média de habitantes em cada lar.

5.2. Passemos a caracterizar o estado civil das pessoas que encabeçam a família em cada uma destas casas. Em primeiro lugar aparecem-nos as famílias normalmente constituídas, tendo um casal à sua frente e um número variável de filhos, a que se juntam por vezes outros parentes: há 694 famílias expressamente mencionadas com esta composição, às quais possivelmente se deverá somar mais uma dezena.

A viuvez, como é normal, enlutava um número considerável de lares: 176 mulheres, encabeçando uma família, referem expressamente a viuvez, sendo de lhe acrescentar um número ainda maior, ao todo umas 206, cujo estado é patenteado pela composição do agregado familiar. Entre os homens, é menor o número de viúvos: apenas 2 se apresentam como tais e somam-se-lhes mais 32 que não mencionam a respectiva esposa.

Como solteiras, vivendo por si, inscreveram-se no rol sete mulheres, mas o número é bem mais alto, pois deverão chegar a uma centena. Também entre o homens se deverão contar uns 50 em estado de solteiros, a que poderemos acrescentar 29 clérigos, dos quais 17 se referem simplesmente como tais (1, que vive com a família, é “clérigo de Evangelho”), 3 como “padres”, 2 capelães e 1 em cada uma das categorias: arcipreste, abade, cura, pregador, frade (além do Frei Estêvão Leitão com que o rol se inicia). O estado de solteiros não implica necessariamente que vivam sozinhos.

Nesses números não estão contabilizadas as 63 freiras do convento de S. Bento, nem a abadessa do convento de Santa Ana, e, com força de razão, as 24 freiras de Vitorino das Donas.

5.3. Entre as famílias inscritas, 915 registam um número variável de filhos, que pode oscilar entre 1 e 11 (do sexo masculino, de 1 a 8, e do sexo feminino, de 1 a 7). No entanto, a maioria das famílias tem entre um e cinco filhos, como se pode ver no mapa seguinte:

Filhos por família

Famílias

Filhos por família

Famílias

Filhos por família

Famílias

 

 

 

 

 

 

1

235

5

64

9

4

2

303

6

34

10

1

3

136

7

17

11

1

4

114

8

  6

  0

40

A distribuição entre filhos e filhas varia de família para família, mas o saldo final é bastante equilibrado, pois a 1313 elementos do sexo masculino correspondem 1140 do sexo feminino, num total de 2450 filhos. A média é de 2,68 filhos por família, ou de 2,53, se juntarmos aquelas em que não se mencionam filhos. Por vezes estes não são mencionados, mas registam-se os netos.

5.4. Por mais de uma centena e meia de lares se distribuem à volta de 250 pessoas que pertencem aos respectivos agregados familiares mas não se enquadram no conjunto das até agora referidas, embora, de um modo geral, estejam relacionadas com elas por laços de parentesco. São em primeiro lugar os parentes mais velhos, do sexo feminino: a mãe ou a sogra (26 em cada uma destas categorias, num total de 52), que na sua maior parte serão viúvas, não incluídas no número das acima indicadas que arcavam com a responsabilidade da família; maior número é o dos netos (46 do sexo masculino e 23 do sexo feminino), ou porque os pais também vivem na mesma casa, ou os deixaram órfãos, ou estarão ausentes, designadamente os que andariam embarcados. Solteiros ou casados, no mesmo lar, se acolhem também irmãos (15) e irmãs (17), e, por conseguinte, não é de estranhar que também aí vivam genros (13) e noras (4), cunhadas (12) e cunhados (2), sobrinhas (22) e sobrinhos (15). Há mais pessoas em vários lares, com grau de parentesco não especificado, e não passam da unidade os que em relação ao chefe de família são referidos em cada uma das categorias de avó, pai, bisneto ou bisneta e tia. A família revela-se com efeito como um especial lugar de acolhimento, especialmente para aqueles que lhe são mais próximos e se sentem confrontados com a necessidade de ajuda ou com o pesadelo da solidão.

6. Dependentes: criados, escravos, moços, amas; profissões

6.1. Um dos aspectos mais simpáticos da adesão à Confraria do Nome de Jesus, por parte da gente de Viana, como já referimos, é a citação expressa, geralmente por nome, de todos os que vivem no seio da família, inclusive daqueles que se encontram em situação de dependência. Há na povoação cinco centenas e meia de dependentes, o que corresponde aproximadamente a um décimo da população. Na maioria dos casos, o número de dependentes não passa de 1 ou 2 por família. Só os mais ricos têm acima de 4 dependentes. Excepcionalmente há três famílias que tem mais de 5: Luís A. Bevilago (6), Cosme de Sousa (7), Gaspar Barbosa Aranha (11) e António Abreu de Lima (15).

Esses dependentes distribuem-se por quatro categorias, dentro das quais só uma delas, por natureza, apresenta elementos apenas do sexo feminino: moços e moças, escravos e escravas, criados e criadas e amas. Também não dispomos de elementos para, a partir deste documento, estabelecer assertivamente diferenças, neste caso concreto, para além do nome, entre cada uma destas categorias, com excepção das amas.

O número mais elevado de dependentes cabe à categoria das criadas (212), seguidas pelos criados (133). Vem a seguir o dos escravos (58) e escravas (54), sendo que alguns deles têm os seus próprios filhos. Mais reduzido se revela o número dos que são designados como moços (32) e moças (41).

A presença de amas está em geral relacionada com a existência de crianças de tenra idade. Mencionam-se amas, em dezanove famílias, uma por cada, mas numa das casas, a de Gaspar Barbosa Aranha, onde há muita gente, a menção é feita no plural: poderemos calcular, por conseguinte, um total de 20 amas.

6.2. Os dados que nos fornece o Rol da Confraria do Nome de Jesus dão-nos a possibilidade de abordar sob outros aspectos a sociedade que acorreu em massa a inscrever-se na irmandade.

Em primeiro lugar o seu modo de vida. Quase insignificante, porém, é o número daqueles que, ao inscreverem-se no rol da confraria, mencionaram a profissão, os quais, no conjunto dos chefes de família, não chegam aos dez por cento: excluídos os clérigos, os dependentes (escravos, moços, criados e amas) e os que se classificam como pobres, não vão além da centena e meia, pelo que a respectiva listagem não terá grande significado. Refira-se, mesmo assim, que as profissões mencionadas por maior número de praticantes são as de sapateiro (17), carpinteiro (13), pedreiro (9), alfaiate (9), tecedeira (9), ferreiro (8) e caleiro (7). Por cinco inscritos é mencionada uma das seguintes profissões: pescador, calafate e serralheiro; por 4, as de doutor, licenciado e tanoeiro; por 3, a de pintor; por 2, as de almocreve, marinheiro, mostardeira, padeira, picheleiro, porteiro, sombreireiro e tabelião. Advertindo que nem sempre os vocábulos corresponderão ao uso e à ortografia actual, apenas uma inscrição menciona cada uma das seguintes profissões: amassadeira, barbeiro, calceteiro, canastreiro, candeeira, carvoeiro, cordoeiro, dizimeira, ermitoa, escudeira, estudante, feitor, ferrador, folheiro, forneiro, mareante, mestre de gramática, mestra, mordomo, oleira, oleiro, ourives, penteeiro, piloto, regateiro, roleiro, surrador, tintureiro e vintaneira. Nitidamente se vê que não foram especificadas as profissões de um grande número de chefes de família, designadamente dos que se ocupavam nas fainas do mar.

A mesma razão que nos impede de fazer um estudo mais matizado do panorama profissional, também impossibilita uma caracterização sócio-económica da sociedade vianense, a partir deste documento.

7. Nome dos vianenses.

7.1. Não podemos concluir a análise, sem um breve apontamento de antroponímia. Como é geral na época, as pessoas são identificadas através de um nome e de um apelido, ou, em vez deste, de uma alcunha ou de uma referência quer geográfica quer profissional, ou equivalente.

Para um universo de cerca de 4400 indivíduos nomeados registamos cerca de uma centena de nomes masculinos e cerca de oito dezenas femininos. A variedade é maior do que a que tínhamos verificado em 1517 e um pouco acima da que registamos em 1549. Nos dois mapas que se seguem, mencionamos, na terceira e quarta coluna, os números correspondentes ao Empréstimo de 1549 e à Finta de 1517, sendo evidente que a comparação só é válida em termos relativos, uma vez que na Finta e no Empréstimo apenas se referem os chefes de família, enquanto o rol de 1561 se estende a todos os que vivem na mesma casa, isto é, a cerca de quatro vezes mais indivíduos.

7.2. Aproximam-se das duas mil as mulheres referidas pelo seu nome neste documento, andando os nomes adoptados pelas oito dezenas.

Sintetiza-se no seguinte quadro o conjunto de nomes femininos que aparecem duas ou mais vezes:

Mulheres

1561

1549

1517

Mulheres

1561

1549

1517

Mulheres

1561

1549

1517

Maria

514

62

30

Constança

15

3

1

Raimunda

4

 

 

Catarina

378

37

13

Briolanja

12

2

 

Lucrécia

4

 

 

Ana

275

26

8

Juliana

10

 

 

Senhorinha

3

 

1

Margarida

137

17

5

Vitória

9

 

 

Lourença

3

 

1

Inês

123

23

14

Susana

9

 

 

Jerónima

3

 

 

Grácia

78

8

2

Madalena

9

1

 

Vicência

2

 

 

Leonor

74

4

1

Joana

8

 

 

Simoneta

2

 

 

Beatriz

73

14

8

Domingas

9

 

 

Sa[n]cha

2

 

 

Isabel

58

39

7

Camila

8

1

 

Orósia

2

 

 

Branca

38

3

4

Aldonça

8

3

2

Gília

2

 

 

Francisca

36

1

 

Genebra

7

3

 

Germanesa

2

1

 

Guiomar

32

1

 

Paula

6

 

 

Felícia

2

 

 

Violante

28

7

 

Marta

6

1

30

Elisa

2

 

 

Justa

28

1

1

Helena

6

 

 

Clara

2

 

1

Apolónia

27

1

 

Inácia

5

 

 

Brígida

2

 

 

Filipa

22

2

1

Conceição

5

 

 

Ângela

2

 

 

Antónia

21

 

 

Irene

5

3

 

 

 

 

 

Mísia/Mécia

16

4

2

Cecília

5

1

2

 

 

 

 

A comparação com as listas anteriores ajuda-nos a concluir que os nomes mais populares, com algumas variações, continuam a ser os mesmos: Maria, Catarina, Ana, Margarida e Inês. Mas há outros que registam uma popularidade crescente: Grácia. Leonor, Beatriz, Isabel, Branca, Francisca, Guiomar, Violante, Justa, Apolónia, etc. Há apenas um nome que, em relação ao passado, está em franco declínio: é o de Marta.

Há uma série de nomes que aparecem uma só vez: Viviana, Tareja (Teresa), Suseriana, Simfrónia, Rosa, Rufina, Petronilha, Hortência, Leonarda, Luzia, Joaninha [Joana], Isilda, Fermitesa, Estefânia, Durança, Benta ou Bieita, Assunção, Engrácia, Antoninha, Águeda, Ada.

7.3. Por seu lado os nomes masculinos mais populares em 1561 são os de António e de Afonso, com um número de portadores, por cada um, que ultrapassa as duas centenas, seguindo-se, com mais de uma centena, os de Francisco, João, Manuel e Gaspar, mas muitos outros identificam mais de uma dezena de moradores.

Outros, pelo contrário, são mais raros, estando entre eles os que se aplicam apenas a um indivíduo: Henrique, Aparício, Bernardo, Vespasiano, Clemente, Geraldo, Lázaro, Matias, Pantufo, Rafael, Rolão, Romão, Romeu, Sa’Miguel, Sansão, Sérgio, Simões, Tiago, Tirso, Valentim, Vassalo, Vítor, Inácio, Jorge, Aires, Amado, Brás, Dinis, Sancho, San’João, São-Domingos.

Alguns fazem a sua primeira aparição na antroponímia urbana local: Jerónimo, Valente e/ou Vicente, Salvador, Tomé, Roque, Cosme, Damião, Mateus, Sisto, Leonardo, Paulo e/ou Palos, Lucas , Antão, frutuoso, Pascoal e Tristão, todos com mais de duas ocorrências.

 

Nomes

1561

1549

1517

Nomes

1561

1549

1517

Nomes

1561

1549

1517

António

284

96

9

Valente/Vicente

21

Duarte

5

8

4

Afonso

226

17

44

André

20

3

1

Heitor

5

1

Francisco

164

29

4

Pedro

19

62

50

Leonardo

5

João

163

136

144

Gregório

18

60

1

Lopo

5

3

1

Manuel

127

12

1

Rui

12

5

15

Nuno

5

1

1

Gaspar

125

19

4

Vasco

12

7

3

Paulo/Pallos 

5

Baltasar

103

10

-

Bernardo

11

2

1

Tomás

5

2

Gonçalo

86

7

Salvador

11

Lucas

4

Diogo/Diego

79

30

19

Garcia

10

1

Nicolau

4

2

Domingos

79

15

5

Gonçalo

10

59

Antão

3

Belchior

72

4

1

Marcos

10

4

1

Frutuoso

3

Álvaro

66

35

30

Jorge

9

4

1

Leonardo

3

2

Gomes

59

4

Miguel

9

1

Pascoal

3

Bento

43

9

1

Raimundo

9

13

Teodósio

3

1

Fernando

41

20

28

Tomé

9

Tristão

3

Bastião

39

17

3

Vicente

9

2

3

Ambrósio

2

Luís

34

3

3

Estêvão 

8

4

5

Baptista

2

Bartolomeu

31

3

7

Gil

8

3

3

Vitória

2

Martim/Martinho

31

15

34

Roque

8

Garcia

2

Sebastião

31

1

Cosme

7

Gabriel

2

Simão

31

9

1

Damião

6

Julião

2

2(?)

Lourenço

22

4

4

Mateus

6

Lançarote

2

1

1

Jácome

21

3

1

Sisto

6

Leonel

2

Jerónimo

25

Cristóvão

5

6

1

Marinho

2

Dado o facto de serem registados com abreviaturas, é natural que haja inexactidões em relação a alguns, grafados de modo semelhante, como Gonçalo e Gregório.

8. Os nomes dos Reis Magos.

Há um aspecto da antroponímia vianesa que só o carácter especial do Rol da Irmandade dos Mareantes permitiu observar. Referimo-nos à devoção aos Magos (na tradição popular designados como Reis Magos, desde meados da Idade Média, que também lhes atribuiu o número de três, com um nome próprio para cada um), o que faz com que em várias famílias de Viana se dêem os seus nomes aos respectivos filhos.

Não seria nova essa devoção, mas conheceu então um especial incremento. Na finta de 1517, só esporadicamente surgem os nomes de Gaspar e Belchior, mas no rol do Empréstimo de 1549 já aparece um número razoável de chefes de família com esses nomes e com o de Baltasar (19 com o de Gaspar, 4 com o de Belchior e 10 com o de Baltasar). Tratando-se de chefes de família isolados, a voga desses nomes, por si, não permitiria concluir que era possível encontrá-los em simultâneo no seio do mesmo lar. Em 1561 o número do chefes de família com esse nome sobem respectivamente para 35, 12 e 24.

O Rol da Irmandade do Santo Nome de Jesus, ao fornecer-nos a composição dos lares com o nome dos seus componentes, permite-nos observar que havia de facto uma devoção que levava a dar sistematicamente aos filhos o nome dos Magos. Isso permite-nos concluir também que no programa de vida das respectivas famílias havia a intenção de alcançar pelo menos esse número de filhos.

No rol encontramos, de facto, 105 famílias em que algum ou alguns dos membros têm o nome dos Magos. Quanto aos chefes dessas famílias, como vimos, já 24 ostentavam um desses nomes. No seio do lar, o número varia, naturalmente em resultado das imprevisíveis evoluções da taxa de maternidade e inclusive da idade dos pais, uma vez que uma parte deles estaria no início ou no meio da idade fértil, e do surgimento de crianças do sexo feminino.  O cômputo geral é o seguinte:

em 33 famílias há uma pessoa com o nome de um dos Magos, sendo em 19 delas o único filho existente;

em 36 famílias é também de um dos Magos o nome de um dos filhos, mas sem exclusividade;

em 7 famílias, em que há dois filhos, ambos os têm o nome de um dos Magos;  

em 12 outras famílias, há dois filhos com o nome de um dos Magos, mas regista-se a existência de algum filho com outro nome;

em 13 famílias  encontra-se em simultâneo o nome dos três Magos, sendo natural que em 8 delas, por terem mais filhos, se lhes juntem outros nomes.

Dos três Magos, o nome mais frequente é o de Gaspar, seguindo-se o de Baltasar e, por último, o de Belchior.

9. Conclusão.

O uso de nomes é característico da sociedade humana, como comunidade que interage através da fala. Os nomes identificavam os indivíduos, e, por isso, nos tempos mais remotos, se consideravam como equivalentes à sua própria essência. Isso explica a importância atribuída aos nomes, que era acrescida, quando se tratava dos nomes de Deus, e depois, por extensão, de Jesus. Daí emanava o respeito que este nome merecia e o poder que lhe era atribuído. Invocá-lo era o meio de obter o seu auxílio, e colocar o seu nome na lista dos que o veneravam era garantir a protecção divina, especialmente em momentos de crise e de incerteza.  

Foi dentro desse espírito que surgiu a Confraria do Santo Nome de Jesus. Em Viana da Foz do Lima, a sua erecção resultou da pregação de Frei Estêvão Leitão, um dos mais dilectos colaboradores do Arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires, que, de partida para Trento, o enviou à povoação, para lançar os fundamentos do futuro mosteiro de Santa Cruz.

Ao longo do ano, acorreram a dar o nome ao rol as mais de 1200 famílias de Viana, e mais algumas dezenas do exterior, inscrevendo, na maioria dos casos, com o seu nome próprio, todos os membros do agregado doméstico, incluindo criados, escravos, moços, de ambos os sexos, e amas. No total, são mais de cinco mil indivíduos. Os nomes de alguns dos inscritos testemunham uma outra devoção que então se enraizara na povoação: os Reis Magos.

Além de nos proporcionar o conhecimento destes aspectos característicos da mentalidade local, o Rol da Irmandade do Nome de Jesus faculta-nos uma interessante visão do panorama demográfico e antroponíico da Viana quinhentista.


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